BELO HORIZONTE (21/10/2019) – Você já ouviu falar de serralha, azedinha, bertalha, peixinho, caruru e maria-gondó? É possível que ainda não. E de ora-pro-nóbis, capuchinha e taioba? Talvez agora os nomes sejam um pouco mais familiares. Na verdade, todas estas espécies são chamadas de pancs: Plantas alimentícias não convencionais.
Por muito tempo, as pancs, que também incluem o grupo das hortaliças não convencionais, eram facilmente encontradas nas hortas e quintais de Minas Gerais. Os anos se passaram e elas cederam espaço para hortaliças que podiam ser produzidas em larga escala, com grande oferta no mercado de sementes e mudas para o cultivo, como é o caso da alface, da couve, do pimentão, do repolho, do espinafre, da couve-flor e muitas outras.
Só que nos últimos anos, um trabalho começou a ser desenvolvido, em Minas Gerais, para o resgate das pancs e elas passaram a ser encontradas novamente nas hortas e feiras do estado. “Este trabalho começou em 2007, com a Emater-MG, Epamig, Embrapa, Ministério da Agricultura e Universidade Federal de Viçosa, além de representantes de agricultores familiares. Observamos uma monotonia na alimentação, com as pessoas consumindo sempre a mesma coisa. Além disso, a gente pensou na questão da tradição, pois está se perdendo esta questão cultural da culinária”, explica o coordenador de Olericultura da Emater-MG, Georgeton Silveira.
A mesma opinião é compartilhada pela pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), Marinalva Woods Pedrosa. “Quando a gente vai ao sacolão, encontramos sempre as mesmas espécies que vão para a nossa mesa. E as hortaliças não convencionais trazem um resgate de valores, de tradições. A maioria é rústica, de fácil manejo no campo e, de modo geral, não demandam grande uso de defensivos. Então, vamos trazer esta qualidade para mesa”, comenta.
De acordo com o coordenador da Emater-MG – empresa vinculada à Secretaria de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (Seapa) – uma das ações para o resgaste das pancs foi a criação de bancos de multiplicação. “A partir deles, os produtores puderam ter acesso aos materiais de propagação. Em 11 anos, foram dezenas de bancos de multiplicação do estado. Nem todos progrediram. Mas tivemos casos de sucesso”.
Um dos bancos de multiplicação foi implantado na fazenda da Epamig, em Prudente de Morais, região Central de Minas Gerais. No local, várias plantas foram estudadas pelos pesquisadores, algumas espécies levadas pelos próprios agricultores da região. “As hortaliças são levadas para o herbário da Epamig, identificadas e retornaram para a comunidade com informações sobre o uso dessas plantas”, explica Marinalva Woods.
Azedinha
Hortas em Sete Lagoas
Um dos locais de cultivo das plantas alimentícias não convencionais são as hortas comunitárias de Sete Lagoas, também na região Central do estado. As hortas começaram com uma parceria da prefeitura com a Emater-MG, em 1982. Na época, eram 35 famílias produzindo com o objetivo de oferecer alimentos para a merenda escolar. Hoje a área plantada, somando sete hortas comunitárias, é de 23 hectares, com mais de 320 famílias de agricultores vendendo em feiras, sacolões, para programas públicos de merenda escolar e até para outros municípios.
Nas hortas comunitárias são plantadas mais de 90 espécies, a maior produção é de hortaliças convencionais. Mas as pancs vêm ganhando espaço nos canteiros. “As pancs já existem desde o início das hortas, porque é tradição familiar de muitos produtores. Algumas delas, os agricultores já conheciam. Outras, não. A partir do momento que houve acesso ao conhecimento e ao material dos bancos de propagação, os agricultores aumentaram a produção destas plantas nas áreas de cultivo e começaram a divulgar junto aos consumidores”, explica Georgeton Silveira.
Há mais de 20 anos trabalhando nas hortas comunitárias de Sete Lagoas, a produtora Maria da Piedade, mais conhecida como Dona Neném, é entusiasmada com a produção das pancs. “Eu gosto de novidade, de ter tudo na horta. Tudo que você procurar, eu quero ter para oferecer. Azedinha, maria-gondó, capuchinha, peixinho. Todas essas eu produzo”, diz.
Ela conta que também gosta de apresentar para os consumidores as variedades que tem na horta. “Eu fui oferecendo para os clientes, ensinando como fazer. Tem dois comerciantes de Belo Horizonte que compram na minha mão há mais de dois anos. Eles pegam toda a variedade que eu tiver de verdura”.
A pesquisadora da Epamig lembra que um dos objetivos do trabalho de resgate das pancs é oferecer as hortaliças de maneira acessível para os consumidores. “Não é resgatar e levar para os sacolões e para os supermercados produtos com valores muito altos que o consumidor não consiga colocar na sua mesa. A gente quer melhorar a renda do produtor, mas que o produto também seja acessível para o consumidor, com qualidade”, afirma Marinalva Woods.
Ora-pro-nóbis
Feiras em Juiz de Fora
No município de Juiz de Fora e arredores, na Zona da Mata, a história foi parecida. Em 2009, um banco de sementes e mudas de plantas alimentícias não convencionais foi implantado numa área da prefeitura. Hoje as pancs são vendidas em várias feiras da cidade. “Inicialmente a ideia foi plantar pensando na segurança alimentar das famílias rurais, mas acabou virando um instrumento gerador de trabalho e renda”, afirma Cândido Antônio, técnico da Emater-MG no município.
O produtor Wander Ferraz, do município de Rio Novo, participa das feiras de Juiz de Fora. Ele conta que, no início, junto com as hortaliças convencionais, levava um pouco de serralha que tinha na propriedade para vender na feira, sem grandes pretensões. “Com as mudas e sementes do banco de multiplicação, comecei também a produzir azedinha, ora-pro-nóbis, capuchinha, taioba, peixinho. Aí comecei a trazer este produtor para a feira também. Vendo tudo”.
As pancs passaram a ser tão procuradas nas feiras de Juiz de Fora que é preciso chegar cedo para conseguir comprar. “Na feira da agricultura familiar, por volta de oito ou nove horas, não se encontram mais estas hortaliças para comprar”, informa o técnico da Emater-MG.
Uso culinário
A produtora Cristina Schitinni tem uma propriedade em Simão Pereira, também na Zona da Mata, onde cultiva pancs e flores comestíveis. Além disso, ela montou uma microempresa para promoção de palestras e oficinas sobre o assunto. “Eu entrego a produção diretamente para o cliente. É um serviço que eu presto. Eu comercializo para chefs de cozinha e cozinheiros. Colho exatamente o que eles querem, do tamanho que eles querem. Foi a forma que eu encontrei de comercializar e sobreviver da terra, foi prestando um serviço diferenciado”, diz.
Ela também desenvolveu várias receitas usando as pancs como ingrediente. Uma delas é o pão de beijo, uma adaptação do famoso pão de queijo de Minas Gerais. Ele é feito de ora-pro-nóbis, polvilho de mandioca e alguns temperos, como a folha de capuchinha. A produtora não usa ovos nem queijo na receita. “É uma maneira de incluir, de uma forma mais divertida, as pancs na alimentação diária, inclusive de crianças”.
O chef de cozinha e professor de gastronomia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Yuri Feliciano, conta que desde 2010, quando foi formada a primeira turma, identificaram a tendência do uso de plantas alimentícias não convencionais na alta gastronomia. “Além da alta gastronomia, tentamos passar também para a comida do dia a dia. Faz parte das nossas aulas apresentar para os alunos essas plantas. Resgatamos as formas de preparo, além de usar para decorar pratos e harmonizar sabores”, explica o professor.
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